quarta-feira, abril 24, 2013

a um passo


Tchekov está deitado antes de morrer e afaga a barba postiça que o fez entrar no teatro na mocidade. Como todas as pessoas que se preparam para abandonar o mundo dos vivos, sente necessidade de acertar contas com a vida. 
-       Mais um vodka.
Lembra-se das brincadeiras tontas com os irmãos Nicolai e Michail. E das discussões com o fiel amigo Vladimir.  Por mais Shakespeare e Victor Hugo que lesse não tinha ambições de superá-los. 
Poderá pensar em alguém a cavar-lhe a sepultura.
Tchekov ainda nada sabia do maio de 68 nem dos centros comerciais. Escrevera na estepe a sua última crónica e não perdia tempo a imaginar o futuro.
E agora agradecia o pão, era bem educado com o passado. 
Talvez pensasse que os rinocerontes são feitos de pêlos, os macacos são parecidos connosco e os tigres não têm manchas iguais.
Melancólico, um pouco reaccionário. Os vindouros gostam de especular.
Apesar de médico, Tchekov receava as dores do seu próprio corpo, vira muita gente a sofrer.
Elege o perfume fúnebre que lhe desperta a mais eloquente sensação de vida: o odor das macieiras e das cerejeiras da sua quinta em melichovo.
Lembra Lidjia Mizinova e de como combateram a cólera. 
Sempre soube como é difícil viver em sociedade, mesmo antes desta ser uma máscara sem rosto.
As suas personagens não gritam, não amaldiçoam, deixam-se estar para ali.
Escolhe a roupa mais apropriada para o momento de se extinguirem as ideias. Não regressará mais ao gelo da rússia, ao moscovo do coração, aos camponeses alcoólicos, e apesar disso está a um passo da imortalidade.

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